sábado, 20 de maio de 2017

O FILHO DA DONA MARIA

O FILHO DA DONA MARIA NO METRÔ DA SÉ

O filho da dona Maria e o mendigo podrão...
Praça da Sé, próximo à entrada do metrô. Não sei precisar a hora, mas deve ser pouco mais de meio-dia. O sol está escaldante. Vários mendigos sentados, bebendo, fumando e conversando. Alguns gritam, outros discutem, outro tanto lavam suas roupas nas águas sujas do antigo chafariz. Na saída de ar do metrô vários cobertores e peças de roupas amarradas às grades eram agitadas pelo vento criado com a passagem do trem subterrâneo. Funcionava como um secador de roupas.
Junto aos mendigos encontram-se algumas pessoas doentes, fazendo hora extra na terra para alguns. Um homem coxo, um cego, um paralítico. Outro deitado sobre um pedaço de papelão. Um leproso raspava a ferida de sua perna com um pedaço de cerâmica. O cheiro intenso de urina, suor e fezes fazia com que todos que desciam do metrô e passassem próximos àqueles mortos-vivos desviassem seus passos, tapando o nariz, tendo ânsia de vômito, desejando que aquele pedaço do mundo fosse engolido com todas aquelas criaturas bestializadas pelo sofrimento, abandono e dor.
Um casal de turistas parou pra tirar um foto daquela cena dantesca. Um dos mendigos se irritou e começou a xingá-los. Com medo, eles partiram apressados. Um trombadinha mirou a câmera e sinalizou para outro mais a frente. De onde eu estava não pude ver direito, mas houve grande correria e gritos de pega ladrão! Já era, rodou, perdeu...
Todos ali tinham em comum alguma desgraça pessoal que os levava àquele lugar. Nenhum outro local era tão público e ao mesmo tempo tão particular para aqueles mendigos do que aquela região da Sé. Os policiais faziam vistas grossas às barbáries que viam e ouviam daquela pequena comunidade de párias. Estando ali ao menos eram menos mendigos espalhados pelo centro. Mais cedo ou mais tarde morreriam ali, à espera de um milagre.
Este bando de maltrapilhos ficavam ali panguando, apenas juntando moscas em seus corpos e fedendo, crendo numa lenda urbana que dizia que quando a administração do metrô ligava o chafariz o primeiro que pulasse na água era milagrosamente curado de suas enfermidades. Dizem que foi um pessoal de uma igreja neo-pentecostal aí que tinha divulgado esta história, ninguém tinha certeza...
Em meio a este caos aparece ele, o filho da dona Maria. Tinha descido na Estação Sé do metrô e ia com muita pressa em direção ao Largo São Francisco, ponto final do Jardim Ângela. O crédito de seu bilhete único estava no limite e tinha que pegar seu ônibus rapidinho para não perder a passagem. Quando porém ele passou seus olhos sobre aquela pequena comunidade próximo ao chafariz, teve sua atenção roubada para o homem deitado no papelão.
Sem saber exatamente a razão (em seu íntimo algo como compaixão) se dirigiu a ele e perguntou:
-E ai mano, firmeza?
-É, mais ou menos. Tô de boa...
-Não é o que eu vejo. Você tá podrão cara. Tô na correria mas algo me incomoda: Você tá aqui acreditando no que o pessoal daquela igreja falou? Você quer ser curado cara?
-É, mais ou menos. Dizem que aqui posso ser curado, mas eu não consigo entrar na água em tempo.
O filho da dona Maria o olhou nos olhos, opacos, sem vida, e perguntou novamente:
-Rapá, eu to te perguntando se você quer ser curado!
Silencio. O mendigo não conseguia falar nada, absorto em seu mundo paralelo. Sem tempo a perder, o filho da dona Maria disse ao moribundo:
-Véio, esta história do banho de chafariz é a mó roubada. Na verdade você acredita nas coisas erradas, e vejo que isso faz muito tempo. Acredita até que não consegue mais sair daí, se entregou, desistiu de viver. Vamos fazer o seguinte: Eu te ajudo a levantar. Vamos! Levante! Jogue este papelão fora e vai cuidar de sua vida!
Vida. Que vida tinha aquele homem? Ali estava bom, estava na zona de conforto, mesmo em meio ao caos. Acostumado ao sofrimento desde que se deu por gente, ali era um bom lugar para estar. De vez em quando passava um pessoal distribuindo sopa. Não era molestado por ninguém (na verdade tinham nojo dele). Mesmo sem entender direito o que se passava, o homem sentiu algo dentro dele maior que seu comodismo, se espreguiçou e se levantou. Todos os outros mendigos ficaram boquiabertos. Aquele homem estava ali desde que fundaram o metrô, quase quatro décadas atrás, e nunca tinham o visto andar!
Neste meio tempo o filho da dona Maria vazou. Tinha só mais dez minutos para usar a passagem do bilhete único e – se ficasse ali – todo o resto do pessoal ia embaçar na dele.
Muitos perguntaram para o mendigo sem nome o que tinha acontecido. Ele não soube explicar. Não sabia nem o nome do filho da dona Maria....


Prof. Abdias Barreto

"Ao único Deus sábio, Salvador nosso, seja glória e majestade, domínio e poder, agora, e para todo o sempre." (Jd 1:25.) 

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